Não temos na Bíblia hebraica a presença de uma personificação do mal ou um termo para designar um demônio com autonomia, ou um líder de hostes malignas, ou muito menos uma visão dualista, onde esses seres são inimigos de Deus, ou desejam impedir seus planos e projetos. Concordo com Schiavo que “a figura independente do mal, é difícil de identificar no Antigo Testamento por ser fruto de uma grande mistura cultural, com influências da magia, da religiosidade popular, do ritualismo apotropáico oficial, do simbolismo poético”.
Em alguns textos da Bíblia hebraica, o bem e o mal estão ligados a Javé (Is 45,6-7; Jó 2,10; Am 3,6). Na teologia exclusivista do javismo, as ações de características demoníacas foram, com o tempo, atribuídas a Deus, ocorrendo em alguns textos o que podemos chamar de “assimilação mítica”, onde “ao adotar antigas tradições, geralmente pré-israelitas, a teologia oficial suprime os demônios das mesmas, transferindo os traços demoníacos a Javé”.
Depois do contato cultural exílico e pós-exílico, ocorre um desenvolvimento da teologia israelita em relação ao mal, pois aparecem outras figuras geradoras de males, mas mesmo elas estão debaixo das ordens de Javé. Vemos esse desenvolvimento, por exemplo, em 2 Sm 24, 1 e 1 Cro 21,1, onde Davi, no primeiro, é pelo Senhor incitado a recensear o povo (ação que seria posteriormente desaprovada), enquanto no segundo Satã é acusado de tal tentação. Ao recontar a história, o cronista, para poupar Deus da culpa direta, pois neste momento o problema da teodicéia pós-exílica é resolvido com seres celestiais responsáveis pelas desgraças, sugere a invasão de um membro da corte divina na casa real para motivar Davi a pecar.
Satã, originalmente é uma atribuição dada a algum ser humano, no sentido de inimigo ou adversária. Em I Sm 29,4 Davi é considerado Stn (Satan); o inimigo de Salomão também é um Satan (I Rs 11,23); em Nm 22,22.32 o anjo do Senhor que se opôs a Balaão se porta como um Satã – neste caso, no sentido de opositor, o anjo age naquele momento como um obstáculo, ou seja, a expressão, também aqui, não diz que o anjo é um ser denominado “Satã” . Com o tempo, esse mesmo Satã se torna uma figura não terrena que está na corte celestial (Zc 3,1s; Jó 1,6s; 2.1) debaixo das ordens de Deus, como um promotor de acusação dentro da imagem das cortes do Antigo Oriente. Em Jó e Zc isso é bem claro. Como se percebe Satã não é na Bíblia hebraica um líder de demônios e muito menos um adversário de Deus. O diabo, na Bíblia Hebraica, é diabo de Deus.
Os espíritos que levam os profetas a mentir a Acab, em um quadro evidente de corte celeste de Javé, são enviados por Deus (I Rs 22, 19-23) e o espírito que atormenta a Saul, não tem autonomia: vem de Javé ( I Sm 16,23).
Um episódio único na Bíblia hebraica está em 1 Sm 28. Saul participa de um ritual de necromancia, em En-Dor – uma prática distintivamente cananita. No verso 13 aparece a expressão elohim que sobem da terra. Brian B. Schmidt, lendo esse episódio à luz da necromância mesopotâmica, onde se tinha a idéia da participação dos deuses que também subiam do abismo, chega à conclusão que o termo elohim designa os “deuses conhecidos por serem convocados para auxiliar a necromancia na recuperação de um espírito”. Essa narrativa a respeito de Saul foi preservada pelos interesses deuteronomistas de mostrar que a terra e as suas bênçãos dependiam da completa separação das práticas religiosas dos outros povos.
Até Belial (bly‘l), como acredita C. Martone, na Bíblia Hebraica é um conceito e não personificação do mal. Na LXX nunca é traduzido como um substantivo próprio, mas sempre por meio de termos tais como ándres paránomoi (homem sem lei, contra lei, Dt 13,14), também como huioí loimoi (filhos da pestilência, I Sm 2,12), ou anēr áphōn (homem insensato, imprudente, Pv 16,27), até mesmo no chamado Targum Onkelos (III d.C) as passagens de Dt 13,14 e 15,9 não se refere a um nome próprio. Isso muda na literatura apócrifa e pseudepígrafa, em Qumran e na literatura cristã.
Na literatura judaica não-canônica, pode-se ver a personificação de Belial, especialmente no Testamento dos Doze Patriarcas . Aqui bly‘l ou Beliar é o nome dado ao Príncipe do Mal, Espírito das Trevas (Test. Levi 19,1): 1) Os homens maus são dominados por seus espíritos (Test. de Ash 1,8; Test. de Levi 3,3, Test. de José 7,4); 2) ele é oposição a Deus (Test. Dan 1,7; Test. De Naf. 3,1); 3) também aparece Belial como aquele que fornece aos seus seguidores uma espada causadora de muitos males (Test. de Ben. 7,1-2. 3); 3) esse Belial será vencido nos últimos dias pelo messias ( Test. de Judá 25,3; Dn 5,10; Test. Ben. 3,8).
No livro de Jubileus ele é um príncipe do mal, e inimigo da humanidade (Jub. 1,20-21). Em Qumran Belial pode indicar algo abstrato, como no uso bíblico, ou um anjo do mal, como na literatura apocalíptica. Qumran é o elo, que traz a idéia abstrata bíblica, genericamente negativa, e a personificação da literatura apocalíptica e do Novo Testamento, assim como da literatura patrística .
Ocorrem na Bíblia Hebraica expressões de seres animalescos e aterrorizantes, termos invocadores de imagens míticas de monstros marinhos, dragões, seres desérticos e divindades estrangeiras. Estes termos e imagens não são organizados como uma demonologia veterotestamentária, num escopo dualista, mas aparecem como seres do imaginário israelita em diálogo com as religiões circunvizinhas.
A imagem dualista da existência e a possibilidade do surgimento de uma demonologia mais prolífera, menos tímida (como aparece no Antigo Testamento), estão ligadas às interações culturais exílica e posexílica, onde a religião de Israel moldou uma demonologia mais definida e rica. É digno de nota também a influência da tradução da Septuaginta (LXX), que traduziu como diabolos, carregado do conteúdo grego, expressões como Satan, mudando o teor demonológico da Bíblia hebraica.
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