terça-feira, 13 de julho de 2010

A Descida de Jesus ao Inferno

A descida de Jesus ao inferno, ou aos infernos, até hoje é alvo de discussões entre os leitores da Bíblia. Desde a expressão descendit ad inferos inserida no Credo de Atanásio encontramos alhures reflexões sobre o assunto: Será que Jesus realmente desceu até as regiões infernais? Ou melhor, será que 1 Pedro 3, 19-22 pode servir de base para existência desse tipo de crença no imaginário do (s) Cristianismo (s) da (s) Origem (ns)? Quem eram os espíritos citados no texto? Seriam eles os demônios ou espíritos humanos?

No texto pretrino supracitado, nos primeiros versos da perícope (v. 13-18), o redator consola os destinatários da carta aproximando os sofrimentos da comunidade ao sofrimento de Cristo. Segundo J. Elliott, em uma análise sociológica dos destinatários – os paroikoi e parapidemoi (peregrinos residentes e peregrinos transeuntes) –, as perseguições limitavam-se a difamações e calúnias por parte dos seus concidadãos na Ásia Menor (1) . Não podemos entrar em detalhes sobre isso, basta-nos saber que a missiva desejava fortalecer e consolar um grupo de peregrinos convertidos ao Cristianismo.

O texto diz ser melhor antes sofrer injustamente por causa do bom procedimento em Cristo, do que justamente por ações dignas de condenação (3,16). E mais, ele fortalece sua argumentação usando como paradigma o sacrifício de Cristo, que representa um justo sofrendo consequências injustas, com um único propósito: “para conduzir-vos a Deus” (v.18), ou seja, se o caminho de salvação dos destinatários construiu-se exatamente na lógica do sofrimento injusto do justo, no programa da vontade de Deus, o que impediria os dependentes desse processo não passarem pela mesma experiência de injustiça? É tanto, que no verso 17 o texto evoca a vontade de Deus para falar do sofrimento da comunidade. Essa experiência de dor, por mais confusa que fosse, indicava uma participação na mesma vivida por Jesus. Contudo, esse que morreu em carne foi vivificado em/no espírito (v.18).

Neste exato contexto aparece a desconcertante afirmação: “no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão...” (v.19). Quem seriam os espíritos? Na continuidade do texto somos informados que esses foram, em outro tempo, desobedientes a Deus (v.20). Em que ocasião ocorreu essa desobediência? O texto informa: nos dias de Noé, na ocasião do dilúvio. Pronto, o texto diz que os espíritos aprisionados no contexto do dilúvio receberam algum tipo de proclamação de Jesus. Até pouco tempo tinha-se a ideia de uma possível pregação do evangelho aos mortos no dilúvio, porque o texto usa o verbo kerysso (anúncio), mas isso é muito improvável, como veremos.

A respeito de que o texto está falando? Esses espíritos receptores da proclamação de Jesus seriam espíritos humanos? Agostinho diria que sim, mas as pesquisas atuais afirmam definitivamente que não (2) .

Para entendermos melhor o texto e colocarmos um pouco de luz nas questões levantadas, podemos ler a passagem utilizando o conceito “dialogismo” de Bakhtin, o qual pressupõe que o enunciador para constituir um discurso leva em conta o (s) discurso (s) de outrem presente no seu. E como disse José Fiorin, interpretando esse conceito bakhtiniano, “todo discurso inevitavelmente é atravessado pelo discurso alheio” (3) . Assim, “dialogismo” são as relações de sentido estabelecidas entre dois enunciados. Segundo esse teórico, o dialogismo é o modo real de funcionamento da linguagem. Um enunciado, que pode ter como suporte um texto escrito, sempre estará em relações contratuais ou polemicas, de divergência ou convergência, de aceitação ou recusa, de acordo ou desacordo com outros enunciados. E mais, o diálogo com outros discursos é bem criativo e dinâmico, como percebemos nos trabalhos realizados na Historia da Leitura de Roger Chartier. Por isso, a pergunta que devemos fazer ao texto de 1 Pedro 3, 19 é a seguinte: com quais enunciados, ou com quais discursos, esse texto está dialogando? Isso nos ajudará na descoberta da identidade dos espíritos no texto.

Um boa hipótese para a leitura de 1 Pedro é aproxima-lo à tradição apocalíptica do Judaísmo do Segundo Templo. Refiro-me, expecificamente, ao Livro dos Vigilantes, que por sua vez está preservado na obra conhecida como I Enoque (esta obra é composta por cinco livros). A data deste conjunto de cinco livros perpassa o terceiro séc. a.C e o segundo d.C. A coleção começa com o já citado Livro dos Vigilantes, que cobre os 36 primeiros capítulos de I Enoque. Dentro do Livro dos Vigilantes encontramos o Mito dos Vigilantes – este em duas versões: cap. 6-11 e cap. 12-16. O mito narra a ocasião quando alguns anjos atraídos pela beleza das mulheres desceram à Terra e escolheram algumas entre elas. Esses anjos são chamados de Vigilantes, por isso o epíteto Mito dos Vigilantes. Da relação dos anjos e mulheres nasceram os gigantes, gerando muitas mortes e caos. A narrativa enoquita diz, também, que no contato com as mulheres, os Vigilantes as ensinaram segredos como manipulação do ferro para construção de armas, uso de adornos e magia. Com o sangue derramado na terra, por causa dos gigantes e dos ensinos celestiais, Deus manda um dilúvio e prende os Vigilantes. Na segunda versão do mito, nos capítulos 12-16, aparece Enoque indo até esses espíritos aprisionados (os Vigilantes) para levar-lhes um anúncio de condenação, por causa da desobediência geradora de consequências catastróficas, narrada nos versos 6-11.

Talvez você me pergunte: O que isso tem haver com o Novo Testamento? Eu respondo: Tudo! O livro de I Enoque foi muito importante para o Judaísmo – a ponto de aparecer em várias outras obras judaicas do Segundo Templo –e também para o Cristianismo (s) Originário (s). Um exemplo bem claro está no livro de Judas, onde é citada uma profecia de Enoque. Pergunto: onde, no Antigo Testamento, Enoque profetiza? Respondo: em lugar nenhum! Mas observando, mesmo que superficialmente, os versos 14-15 dessa pequena carta neotestamentária percebemos a citação literal de I Enoque 1,9. Ou seja, para que Judas citasse esse texto como uma profecia era necessária alguma influência dessa literatura no período do Novo Testamento. E mais, a ideia de anjos aprisionados do verso 6 pode lembrar a mesma história preservada no livro de I Enoque. Esses são exemplos gritantes, mas outros mais implícitos poderiam ser expostos aqui (inclusive, a igreja Cristã etíope tinha o livro de I Enoque em seu cânon).

Voltemos agora para o texto de 1 Pedro. É muito provável uma relação dialógica entre esse texto e o Livro dos Vigilantes. No entanto, aquele faz uma mudança de papéis ao apropriar-se deste. De Enoque, como dizia a tradição judaica, I Pedro transporta para Jesus a ação de ir aos espíritos que estão aprisionados desde a época do dilúvio. Então, provavelmente os espíritos citados em 1 Pedro 3,19 são os Vigilantes, que por terem desobedecido às ordens de Deus, causando muitos malefícios a humanidade, foram aprisionados.
Outra questão nessa discussão é se realmente o texto fala sobre "descida", que rapidamente alguns interpretam como ao inferno. O particípio aoristo do verbo poreúomai (tendo ido), do verso 19, não tem sentido necessariamente de “descer”. Este verbo é utilizado na literatura do Novo Testamento, fora do texto petrino, para falar da “ascensão” de Jesus (At 1,10-11; Jo 14, 16). E, em I Pedro 3,22 é usado no sentido de “subir" e não “descer”. O próprio livro de II Enoque (Enoque Eslavo, pseudepígrafo do Séc. II d.C), que tem dependência de I Enoque, e o Testamento de Levi (pseudepígrafo do século I a.C), afirmam que os Vigilantes decaídos foram colocados no segundo céu. Por isso, é mais provável pelo contexto de 1 Pedro e da literatura antiga, a presença da ideia de que Jesus "subiu" (até o céu?) e anunciou algo aos “espíritos em prisão”. Como diz Elliott: "A descrição de Jesus Cristo e sua atividade pós-morte em 1 Pd 3,18- 22, eu sustento, que faz claro uso dos temas e linguagem contidas em 1 Enoque 6-16, descrevendo Cristo como uma figura de Enoque ascendendo ao céu e anunciando a condenação para os angélicos espíritos punidos e aprisionados dos tempos de Noé" (4) .

No texto de I Enoque o conteúdo do anúncio aos espíritos é condenatório e escatológico. Provavelmente, a perícope petrina carregue a mesma ideia, e assim o conteúdo da mensagem de Jesus não é o kerigma de salvação, como mensagem básica cristã, mas anúncio de condenação à luz da tradição enoquita. Os espíritos presos que se refere o texto é uma lembrança dos Vigilantes da narrativa do Mito dos Vigilantes, os quais além de serem aprisionados estavam esperando para o fim dos tempos a condenação escatológica (que em I Enoque seria o dilúvio).

Assim, em 1 Pedro 3,19 não encontramos base para a tão conhecida "descida de Jesus ao inferno", mas um indício de como I Enoque pode nos ajudar a compreender alguns textos complicados da literatura cristã, porque ecoam imagens, ideias e imaginário da literatuda enoquita.

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